Por Marjane
Desde que a Secretaria Estadual da Educação de São Paulo passou a se valer de uma plataforma digital para dar sequência ao ano letivo que vem sendo afetado pela pandemia de Coronavírus, um outro caos passou a se instaurar. Este caos está relacionado à maneira como o Ensino à Distância vem sendo implementado. São informações truncadas, desorganização das escolas/gestores, falta de recursos para alunos/professores e por aí vai.
Entretanto, neste texto, gostaria de expor uma situação que me chamou muita atenção e que me motivou a fazer inúmeras reflexões dando origem ao que escreverei adiante.
Tenho observado nas redes sociais, sobretudo Facebook, um grande número de jovens se queixando da grande quantidade de atividades enviadas para eles por via dessa plataforma digital utilizada pela Secretaria Estadual de Educação. A última postagem que me chamou bastante atenção foi a da página SAD, que denuncia o número abusivo de atividades aplicadas aos alunos. Em 7 dias, eles receberam 71 atividades.
Indago: qual a necessidade de sobrecarregar adolescentes e crianças com tantas atividades?
Estamos enfrentando uma pandemia que matou milhares de pessoas ao redor do mundo e segue matando. No Brasil, já alcançamos o triste número de 8 mil mortes. Em São Paulo, as mortes ultrapassaram a marca de 3 mil. O governador João Dória decretou luto oficial nesta quinta-feira (07/05).
Será que precisamos nesse momento de sobrecargas? O que seria mais adequado a esses jovens nesse momento: 71 atividades por semana ou de algum tipo de assistência psicológica online para ajudá-los a encarar todo esse caos e, assim, conseguirem estudar, adquirir conhecimento?
Será que a morte de 8 mil pessoas não é razão suficiente para refletirmos sobre a saúde mental de todos nós – crianças, jovens, adultos e idosos – diante de um quadro de pandemia nunca vivido por nenhum de nós antes?
Será que nossos adolescentes passarão incólumes a tudo isso e, portanto, podem fazer 71 atividades por semana tranquilamente?
Nós, adultos, temos nos revirado na cama noites a fio com inúmeras preocupações que vão do medo da contaminação pela doença até o medo de não conseguir pagar as contas no final do mês. O medo nos ronda diariamente desde que a pandemia se instaurou. E será que crianças e adolescentes estão encarando tudo isso com tranquilidade? Como estará o interior de cada um desses jovens?
O fato de muitos não trabalharem fora e não liderarem uma família como adultos não significa que estejam ociosos o tempo todo e despreocupados. Muitos estão cuidando dos afazeres domésticos enquanto seus pais estão enfrentando a pandemia em ônibus lotados, trabalhos mal remunerados e que não oferecem proteção contra o contágio de Coronavírus. Afinal, a campanha cor-de-rosa #fiqueemcasa não contempla a todos.
Será que os jovens, ao verem seus pais nessas condições, não se sentem tensos? Preocupados o suficiente?
Além disso, há adolescentes que trabalham fora de casa como “jovem aprendiz” e alguns, infelizmente, precisaram abandonar seus empregos. Ou porque foram dispensados ou porque precisaram sair para cuidar de irmãos menores em casa. Esses jovens perderam a chance de contribuírem com a renda familiar. Será que estão bem?
E o que dizer das relações abusivas que ocorrem dentro das casas? Há muitas famílias enfrentando casos ainda maiores de violência doméstica dado o isolamento social. Jovens estão presenciando cada vez mais a violência verbal, física, psicológica e até sexual dentro de suas residências. Isso quando não são eles as próprias vítimas disso tudo.
Esses jovens têm mesmo condições para realizarem 71 atividades em 7 dias?
E a população miserável que nem saneamento básico possui quanto mais Wi-Fi? Como os jovens que enfrentam a miséria cotidianamente irão estudar à distância? Com quais recursos? Com quais incentivos? Com qual saúde mental?
A lista de problemas enfrentados pelos jovens é grande. Com a pandemia ela aumentou. E eles, em sua grande maioria, estão isolados em suas casas. Muitas vezes, sem ter com quem desabafar seus medos. Ainda que tenham familiares ou amigos que podem se comunicar virtualmente, estão mais solitários. E isso é ruim!
Sem o ensino presencial a Educação fica desumanizada, o jovem perde a oportunidade de se socializar, de se expressar adequadamente, de trazer à tona suas dificuldades, dúvidas e medos.
Confinados agora em seus lares estão lidando com fantasmas diversos que nós, adultos, também lidamos. Nós, adultos, não temos vergonha de assumir a necessidade de fugas, de paraísos artificiais para conseguirmos encarar o dia a dia, falamos sobre isso até em tom de piada. Mas julgamos o jovem que se queixa e denuncia os abusos que sofre, inclusive o de excesso de atividades escolares. Achamos, muitas vezes, que ser jovem é estar isento de sofrimento psíquico e de cansaço. Estamos totalmente equivocados!
Para completar a série de equívocos, o Governo Federal/MEC lançou uma campanha para divulgar o ENEM com um discurso totalmente fora da realidade. Ignorando todos os problemas que os jovens estão enfrentando nesse momento crítico da história. Veremos mais uma vez as injustiças contra uma classe ecoar num processo seletivo excludente. Mais uma vez a meritocracia cravará suas garras afiadas nas costas daqueles que não conseguem competir nessa corrida desigual, agora agravada pela pandemia e seus efeitos colaterais.
Portanto, basta de romantizar esse período de isolamento social. Ele é um mecanismo para contenção de danos. Não é um retiro. Não são férias. Estamos, quem pode, em casa. Mas, vendo mortes ocorrerem o tempo todo. Vendo o desemprego aumentar. Vendo a crise política e econômica nos apertar o pescoço.
Não há saúde mental que resista a tanta pressão, a tantos fatos difíceis de serem processados. Não há como fazer 71 atividades escolares por semana num cenário tão complexo.
Basta de romantizar a Educação à Distância!
Sabemos bem que a educação pública visa a manutenção da burguesia. Ou seja, as escolas “produzem” mão de obra para o mercado de trabalho e os grandes capitalistas pagam o mínimo possível por ela, negando cada vez mais os seus direitos. Seu sistema/discurso meritocrático é injusto, cruel, racista, classista, xenófobo, homofóbico, machista!
A Educação e o Conhecimento são de enorme necessidade, sim! Mas são elementos que precisam ser libertadores!
Não é sobrecarregando alunos com conteúdos mal explicados, mal trabalhados e sem sequência didática que aproxime o estudo à realidade enfrentada pelo aluno que iremos conseguir a transformação social que tanto desejamos.
Se você é um profissional da educação e está lendo esse texto, não romantize e nem permita a romantização do sucateamento dessa área.
Que fique claro: o texto não é contra a educação e o conhecimento! Não é contra o processo de aprendizagem! O texto é uma crítica à forma como a Educação vem sendo conduzida nesse momento trágico da história da humanidade.
A Educação precisa ser crítica, libertadora, voltada para a vida prática, para a realidade, precisa ter qualidade, precisa promover igualdade, precisa ser construída junto com alunos e pais de alunos, necessita de presença e de humanização!
Marjane é professora da rede pública estadual de SP
