por Ian Felippe
Em 25 de Agosto de 1998, quando Lauryn Hill lançou a sua obra prima, o “The Miseducation of Lauryn Hill”, eu não tinha nem 4 anos mas, no entanto, cresci já familiarizado com a voz, o carisma e o talento de Lauryn por causa do The Score, disco do Fugees de ’96 (em especial, com o hino Killing Me Softly), qual meus irmãos escutavam no repeat praticamente o dia todo, junto com os discos do Racionais e outros grupos de hip hop dos anos 80/90.
Alguns anos atrás, eu me reencontrei com a voz, a poesia, a fúria e os desabafos de Lauryn, quando comecei a me envolver mais com música e cinema depois do ensino médio, pois estes eram os únicos meios que eu encontrava pra fugir dos problemas e da realidade que todo adolescente homossexual da classe trabalhadora nos anos 2000 enfrenta, principalmente quando não se tem perspectivas de entrar numa universidade, que carreira seguir e se conseguirá um trabalho.
O Miseducation é um desses discos que facilmente se tornam inesquecíveis, seja pelas melodias das canções, dos gêneros (que passeiam pelo reggae ao soul, ou do rap ao r&b de forma muito singular), pelas letras intimistas (que parecem como um diário cantado) e pela bela voz de Lauryn, que envolve qualquer pessoa que se preste a ouvir com atenção suas histórias mais particulares neste que é, provavelmente, um dos discos femininos mais importantes de todos os tempos.
Há algo em Lauryn e no Miseducation que me remetem imediatamente a turbulenta carreira e fases de Nina Simone, seja pelos anseios, questionamentos e as dificuldades que Lauryn enfrentou tal como Nina, inclusive, ela revela de forma muito singela em “To Zyon”, uma das mais belas canções do disco, dedicada ao filho que teve com Rohan Marley no auge da carreira, sobre a intromissão e o julgamento das pessoas à sua decisão de ter seu filho ao invés de “focar na carreira” (afinal, segundo a lógica da sociedade machista e capitalista, mulheres quando mães “não prestam pra mais nada”). A história de Lauryn é, sem sombra de dúvida, também a história e condição de milhares de mulheres negras trabalhadoras que tiveram e continuam tendo de enfrentar as barreiras de serem pobres e conviverem com o machismo, o racismo e a lesbobitransfobia todos os dias.
O hip hop e o rap, embora gêneros revolucionários por essência, já que nasceram como parte da resistência do povo negro americano, também carregaram por muito tempo nas letras o caráter preconceituoso da ideologia dominante, principalmente em relação às mulheres e homossexuais. Lauryn, através de muitas canções do Miseducation (como “Superstar”, por exemplo), revela o fardo e a trajetória de muitas MCs que foram questionadas, subjulgadas, tratadas com desrespeito e diminuídas em seu talento (quando comparadas com homens MCs).
Desde sua trajetória no Fugees, e ao lado de outras mulheres de sua geração, como Mary J Blige, Aalyah, Lil Kim, Erykah Badu, Eve e tantas outras, Lauryn lutou para quebrar tabus do gênero, impondo novos temas para suas poesias que não focasse só nas “disputas” entre Rappers e MCs que marcaram o rap e hip hop nos anos 90 (quem não se lembra das tretas entre Tupac e Notorious B.I.G. que fugiram das rinhas de MCs pra violência física?), falando de amor, experiências pessoais, sexualidade, preconceito, a realidade das mulheres negras, a vida na periferia, a superficialidade do mundo das celebridades e de como o dinheiro pode subir à cabeça (a faixa “Final Hour”, do Miseducation, aliás, reflete sobre este tema de forma definitiva).
Se hoje mulheres negras como Alicia Keys, Beyoncé, Nicki Minaj, Jazmine Sullivan, entre outras, enfrentam abertamente o machismo, o racismo e a LGBTTQI+fobia em seus discos, se deve ao fato de mulheres como Lauryn que ousaram, mesmo com as fragilidades, contradições e limitações destes debates em seu tempo, assim também como mulheres antes dela o fizeram (Aretha Franklin e R.E.S.P.E.C.T provam que esta luta é de longa trajetória). Por isso, também, através das lutas organizadas da classe trabalhadora e dos movimentos de luta anti opressões, principalmente no período histórico dos EUA entre 50 e 70, que as artes se revolucionaram e a música negra passou a ser utilizada como ferramenta de mobilização política. As lutas do movimento por direitos civis, das mulheres feministas, assim como as lutas do movimento LGBTTQI+ (principalmente a revolta de Stonewall) e todo o processo de construção organizada e coletiva das lutas anti opressões, são reflexo direto da própria desmarginalização do rap e hip hop que, de gênero perseguido, passou hoje a ser apropriado pelo capitalismo, sendo o maior e mais rentável gênero musical nos EUA (e em diversas partes do mundo), ao mesmo tempo que um dos mais politizado. O “The Miseducation of Lauryn Hill”, neste sentido, é parte desta transição que passou a música negra norte americana, se tornando, por excelência, uma essencial trilha sonora para as lutas das mulheres negras trabalhadoras de todo o mundo.