O regime político burguês no Brasil vive a sua maior crise desde a queda da ditadura militar, em 1984. Porém, é uma crise mais profunda, que expressa os elementos mais gerais da crise crônica dos regimes burgueses que caracteriza a situação mundial. A isso se acrescentam os elementos de crise gerados pela transição de um governo de frente popular para um governo burguês “normal”[1].
A experiência histórica demonstra que nos países semicoloniais a subida e a descida do poder de governos de frente popular precipitam ou potencializam crises nos regimes políticos. A saída inglesa, esquematizada por Nahuel Moreno[2] como a substituição de um governo de frente popular por um governo burguês “normal” pela via pacífica das eleições burguesas, é uma transição comum na Europa, onde a integração dos partidos da socialdemocracia aos regimes democráticos burgueses é mais estrutural, lhes outorgando uma maior solidez (embora isso também venha mudando com a crise crônica dos regimes e temos de acompanhar a evolução do governo de frente popular do Syriza, na Grécia).
O principal elemento que potencializa a situação prerrevolucionária e a crise do regime democrático burguês no Brasil é a ofensiva recolonizadora do imperialismo, que se expressa hoje na ofensiva burguesa-imperialista sobre os países semicoloniais em resposta à crise mundial.
A burguesia dos países semicoloniais vive sob a dupla pressão do imperialismo e do proletariado e, pelo menos desde a crise da década de 1980, abandonou qualquer pretensão de um desenvolvimento nacional autônomo, capitulando totalmente à recolonização imperialista. Esta havia avançado a galope durante os governos de FHC, mas foi obrigada a diminuir a marcha com a vitória da frente popular em 2002, que expressou de forma distorcida (eleitoral, sem romper com o regime burguês), uma vitória da luta de massas que se desenvolvera nos anos 90 contra as medidas neoliberais de FHC e contra o projeto do imperialismo ianque de impor a Alca.
De 2002 até a abertura da crise mundial em 2009, os governos de Lula e Dilma aplicaram uma política econômica mal chamada de “social liberal”, a qual, sem romper com os princípios do liberalismo econômico impostos pelo imperialismo, nem atacar os superlucros da burguesia (antes o contrário), fez pequenas concessões ao proletariado e aos setores inferiores da pequena burguesia, com base na disponibilidade de crédito (endividamento) e no crescimento da economia mundial (comodities). Esta conjuntura econômica mundial tornou menos urgentes as reformas neoliberais, que foram sendo adiadas ou diluídas, permitindo um período de relativa “paz entre as classes” durante os governos da frente popular, até a segunda metade do primeiro governo Dilma.
Contudo, a euforia econômica da primeira década do novo século levaria à debacle de 2009. As ondas de choque da crise mundial, que começara nas metrópoles imperialistas, atingem em cheio o Brasil a partir de 2014, no início do segundo mandato de Dilma. A “marolinha” se revelou então como um tsunami. O avanço da recessão e da ofensiva econômica do imperialismo (que exige o bombeamento constante da mais valia acumulada nos países semicoloniais para as metrópoles através dos mecanismos da dívida pública e das remessas de lucros) vai minar pela base o pacto frente populista.
Já desde as Jornadas de Junho de 2013, os setores dominantes da burguesia, a oposição burguesa e os meios de comunicação de massas passaram a desenvolver uma campanha permanente de desgaste do governo Dilma, canalizando contra o PT e a frente popular o crescente descontentamento popular. Nas eleições de 2014, estes setores investiram na derrota eleitoral da frente popular através da candidatura de Aécio Neves (PSDB), e por pouco não o conseguiram. As tentativas fracassadas do governo Dilma/Levy de retomada das reformas e privatizações precipitaram a crise do governo logo no início do seu segundo mandato: à pressão burguesa imperialista pelo avanço das reformas vieram se somar a desilusão e o sentimento de traição dos setores mais avançados e organizados do proletariado que apoiavam o PT e a frente popular, e também a histeria da pequena burguesia e dos setores médios exasperados pela crise.
A burguesia, mesmo temendo a cada passo que a crise do governo Dilma precipitasse uma crise maior do regime político, foi sendo obrigada a adotar uma política de derrubada do governo da frente popular. Para isto, apoiando-se em experiências recentes em outros países semicoloniais (Paraguai, Honduras), a oposição burguesa valeu-se de duas políticas combinadas: de um lado, institucionalmente, orquestrou a manobra do impeachment de Dilma, mecanismo do próprio regime democrático burguês; de outro, instrumentalizou a Operação Lava Jato e a “luta contra a corrupção do PT” para mobilizar a pequena burguesia e a “classe média” nos atos do “Fora Dilma, Fora PT”.
A operação Lava Jato
Somos obrigados aqui a nos estender um pouco para caracterizar a Operação Lava Jato. A direção do PSTU, para justificar sua política de adaptação e capitulação à Lava Jato busca caracterizá-la como resultado de uma ação “independente” do juiz Moro e seus aliados das “forças tarefa” do Ministério Público e da Polícia Federal. Confusamente, caracteriza a Lava Jato como progressiva, chegando a compará-la ao movimento dos tenentes dos anos 1920, que foi um movimento progressivo da oficialidade pequeno burguesa das Forças Armadas contra o regime da República Velha, em torno às tarefas democráticas, que culminou na Revolução de 1930.
Não temos como fazer uma análise profunda da Lava Jato nos limites deste texto. Todavia, é preciso sublinhar que é um grave equívoco caracterizá-la como progressiva, porque, ao contrário do tenentismo, Moro e seus asseclas, em nome da “moralização da política”, defendem medidas bonapartistas (as tais “10 medidas contra a corrupção”) que atentam contra as liberdades democráticas e os direitos civis (como o habeas corpus) e se utilizam de métodos judiciais e policiais autoritários (como as conduções coercitivas, prisões preventivas e delações premiadas). Afirmar o caráter “independente” de Moro e Cia é encobrir o fato óbvio de que suas investigações e ações miram apenas os partidos da frente popular e os setores da burguesia a ela associados (tipo Odebrecht e JBS). Desconhecer os interesses imperialistas que se escondem atrás da “colaboração” das autoridades e bancos suíços e ianques na “luta contra a corrupção na Petrobrás” é completamente pueril.
Certamente a Lava Jato é expressão da crise do regime, mas não significa que por isso seja progressiva. A propósito, a corrente MNN/Transição Socialista é consequente (em seu ultraesquerdismo pequeno burguês) em defender o caráter progressivo da Lava Jato e a política de “unidade de ação” com o juiz Moro, com eixo na prisão de Lula. A simpatia política com a Lava Jato, mal disfarçada pela direção do PSTU com sua política centrista, é uma verdadeira confissão das influências da pequena burguesia na direção do partido.
Mas, afinal, o que explica que a chamada “República de Curitiba” tenha tido uma influência tão determinante nos acontecimentos políticos? O elemento determinante é que a burguesia utilizou a Lava Jato como um aríete contra o governo da frente popular, contra o PT e seus principais dirigentes. A “cruzada moral contra a corrupção” foi transformada no principal mote para a mobilização da pequena burguesia e da “classe média” nos atos do “Fora Dilma, Fora PT”, elevando Moro e os homens da Lava Jato a grandes heróis da nação e salvadores da pátria.
Os principais partidos e lideranças burguesas, como o PSDB, DEM, FHC, Aécio e Alckmin vacilaram muito em alavancar a Lava Jato e impulsionar os atos do Fora Dilma, por temer o aprofundamento da crise do regime. Ora, os dirigentes políticos da burguesia sabem melhor do que ninguém como funciona o Estado como “comitê de negócios da burguesia”, e que a corrupção é a regra, o “modus operandi” de todo o sistema. A Lava Jato, ao expor parte das entranhas do regime burguês com a revelação dos esquemas de corrupção do PT e seus principais sócios burgueses da frente popular, abria um perigoso precedente. O que aconteceria se os métodos de Moro passassem também a ser utilizados contra os partidos da oposição burguesa e o conjunto da burguesia?
Devido a estas vacilações das lideranças burguesas, quem tomou a frente do Coxinhaço foram as novas organizações da direita burguesa e pequeno burguesa como o MBL, Vem pra Rua e outras, e os partidos da oposição burguesa acabaram indo a reboque. Contudo, os temores das principais lideranças burguesas acabaram por se concretizar: a “luta contra a corrupção”, utilizada como instrumento para a derrubada do governo Dilma, levou a um agravamento da luta entre as facções burguesas por sua sobrevivência econômica e política e, como consequência, a um agravamento da crise do regime político.
É o que se evidencia no caso da JBS. A dupla Joesley & Wesley, antecipando-se a uma investigação sobre seu poderoso conglomerado crescido à sombra dos governos Lula e Dilma, montou um verdadeiro thriller policial envolvendo nada menos do que o presidente da República e o presidente do principal partido burguês e ex-candidato à presidência, além de chantagear os ilustres togados do STF e procuradores do Ministério Público. A manobra, até agora bem sucedida dos donos da Friboi, orquestrada por fora do controle do juiz Moro e Cia., precipitou a crise do governo Temer, ameaçando os planos da burguesia e do imperialismo de sustentar a “pinguela” de Temer até as eleições de 2018 e de aprovar as reformas da CLT e da Previdência no Congresso.
Apenas de passagem, é preciso apontar que o empenho da burguesia em sustentar por todos os meios o governo “pinguela” de Temer contrasta com a atitude desta classe diante do governo Dilma, o que comprova a caracterização de Moreno de que a burguesia não considera os governos de frente popular como seus governos e busca livrar-se deles assim que amadurecem as condições para isso. Este fato, por si só, deveria ser suficiente para que a direção do PSTU e da LIT refletissem melhor à luz da realidade da luta de classes, antes de seguir avançando na revisão do conceito de governos de frente popular, um dos principais elementos que tem levado à confusão teórica e aos zig zags políticos à direita e à esquerda.
A burguesia neste momento está empenhada em estancar a crise do regime através de um grande acordo que está em curso envolvendo os principais partidos do regime (incluído o PT), o governo Temer e os principais dirigentes do Congresso Nacional e do Supremo Tribunal Federal, visando virar a página da “luta contra a corrupção” e normalizar as relações entre os “três poderes” da República. Esta não é uma tarefa fácil, mas a burguesia conta com a inestimável ajuda das direções traidoras do movimento operário e de massas para implementá-la.
[1] Dando sequência à publicação de textos da I Conferência do GOI, analisamos e caracterizamos aqui a situação do Brasil. Este texto foi escrito em junho de 2017 como parte da plataforma da Fração Morenista que se formou no congresso do PSTU e que, posteriormente, deu origem ao GOI.
[2] Nahuel Moreno, A traição da OCI.