Quem ameaça a democracia?

W. Ioffe

A polarização política entre Lula e Bolsonaro se plasmou nos últimos dias na contenda entre duas “cartas em defesa da democracia”.

Assustados pelas novas ameaças golpistas de Bolsonaro e da cúpula das Forças Armadas, que toma agora como mote uma suposta fraude eleitoral que viria das urnas eletrônicas, e talvez incentivados pelo sonoro não dado pelo governo Biden às manobras golpistas de Bolsonaro, um grupo de intelectuais da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, da Universidade de São Paulo, decidiu tomar uma atitude escrevendo uma “Carta aos brasileiros em defesa do Estado Democrático de Direito”.

A carta “bombou” na internet e passou a ser divulgada e comentada pelos principais meios de comunicação (Globo, Estadão, Folha de SP etc.). Quando escrevemos este artigo, a carta já conta com centenas de milhares de assinaturas, encabeçadas pela fina flor da elite econômica, política, intelectual e artística do país. Na rabeira desta elite somaram-se os democratas da esquerda domesticada (Lula, Boulos, parlamentares dos partidos de esquerda, sindicalistas, dirigentes de coletivos de negras e negros, mulheres, LGBTQIA+ etc.). E atrás dos reformistas vieram as assinaturas de alguns revolucionários de palavras, em nome da “unidade de ação democrática” com a burguesia. Os dirigentes do Movimento Fora Bolsonaro e das centrais sindicais não perderam a oportunidade de se manter a reboque da burguesia “democrática”, marcando uma nova manifestação no dia 11 de agosto, dia em que a carta será lida solenemente sob as “arcadas” da Faculdade de Direito. Se fizermos uma radiografia das assinaturas desta carta vamos ter um retrato fiel da frente ampla em torno da candidatura de Lula e Alckmin, que reúne hoje a burguesia e a pequena burguesia democrática e os partidos e dirigentes que falam em nome da classe trabalhadora.

No contra-ataque, um grupo de “advogados de direita” (ADBR), lançou um “Manifesto à nação brasileira – Defesa das liberdades”, que rapidamente também “bombou” na internet com centenas de milhares de assinantes, porém, menos ilustres. A radiografia desta carta nos dará um retrato da “arraia miúda” bolsonarista, os setores da burguesia e da pequena burguesia (e sua trupe correspondente de intelectuais, juristas, políticos e artistas do “baixo clero”) que investem na saída política autoritária.    

A carta da frente ampla está centrada na defesa das instituições democráticas do regime, com destaque para o Supremo Tribunal Federal. Já a carta bolsonarista prima pela defesa das “liberdades e garantias individuais”. Se recorrermos à história da luta de classes, veremos que os primeiros tentam repetir a tragédia como farsa; já os segundos pretendem repetir a tragédia histórica como tragédia mesmo. 

Expliquemo-nos.

Os autores da “Carta aos brasileiros em defesa do Estado Democrático de Direito” querem reviver a famosa “Carta aos brasileiros de 1977”, escrita por professores da Faculdade de Direito da USP e lida no Largo de São Francisco, em 8 de agosto de 1977, num dos primeiros protestos da elite intelectual burguesa contra a ditadura militar exigindo a democratização do país.

A ação dos intelectuais expressava o rompimento de setores da burguesia e da pequena burguesia com a ditadura militar. As manifestações contra a ditadura já haviam começado através do movimento estudantil. Além disso, o imperialismo estadunidense, a partir de sua derrota na Guerra do Vietnã e com a ascensão do governo democrata de Jimmy Carter, passava a impulsionar a “redemocratização” nos países da América Latina, varridos por ditaduras militares nas décadas de 1960 e 1970. Pressionados pelo movimento de massas e pelo imperialismo, setores cada vez mais amplos da burguesia vão se distanciando dos militares e defendendo o fim da ditadura. Este rompimento se acelera a partir do ressurgimento das greves operárias no ABC, em maio de 1978, que detonam um poderoso ascenso grevista em todo o país, que desafia a ditadura e dá base à fundação do PT, em 1979, e da CUT, em 1981.

Naquele momento, apesar de seus interesses antagônicos, a burguesia e o proletariado convergiam na política de colocar fim ao regime militar. O proletariado necessitava conquistar liberdades democráticas para sua luta por melhores salários e condições de vida e trabalho; a burguesia, temendo que a crise do regime precipitasse uma explosão revolucionária, manobrava para fazer uma transição pacífica a uma regime democrático burguês, para preservar seu sistema de exploração econômica. A unidade de ação se concretizou no Movimento Diretas, Já!, em 1984, que selou o fim da ditadura. Com a ajuda de Lula, do PT e da CUT, a burguesia conseguiu evitar uma revolução democrática que abrisse as portas para a revolução socialista no país. Mesmo assim, o fim da ditadura e a conquista de um regime burguês com amplas liberdades democráticas foi uma vitória da classe trabalhadora. 

Hoje, os setores que alentam a nova “Carta aos Brasileiros em defesa da democracia” se unem não para colocar fim a um regime de opressão bonapartista, mas para defender o atual regime de opressão da burguesia que se sustenta sob uma fachada democrática. Querem repetir a história como farsa. Sua causa é a defesa das instituições do regime “democrático”, dos poderes da República, quer dizer, as instituições do Estado burguês que são responsáveis pela miséria, pelo desemprego, pelo genocídio durante a pandemia, pela submissão colonial ao imperialismo, pela violência contra os povos e setores oprimidos e todas as mazelas da exploração e da opressão capitalista em nosso país. Senão, vejamos.

Comecemos pelo adulado Supremo Tribunal Federal, ápice da intocável casta do Poder Judiciário, que do alto de seu olimpo, desde FHC até Bolsonaro, sacramentou todas as reformas antioperárias que foram demolindo as leis trabalhistas, previdenciárias e de proteção ao trabalhador. O STF que deu cobertura ao golpe contra o governo Dilma, arquitetado por Moro e Cia na “Operação Lava Jato”, e que assinou embaixo da prisão de Lula. O STF que deu amém à intervenção militar no Rio de Janeiro durante o governo Temer. O STF que é cúmplice da escalada de violência policial e miliciana contra os povos indígenas e setores oprimidos.   

A outra instituição defendida pelos *democratas” é o Congresso Nacional, que dispensa maiores apresentações: verdadeiro covil de bandidos e corruptos, tomado de assalto pelos partidos do Centrão e pelas bancadas da ultradireita bolsonarista. Falar de sua independência frente aos demais poderes, como faz a nova “Carta aos Brasileiros”, é um acinte à inteligência, pois o Congresso não passa de um poder carimbador de projetos emanados do poder Executivo, um balcão de negócios da burguesia que deu suporte a todos os ataques contra a classe trabalhadora feitos por Bolsonaro e Temer, sempre sob o “princípio” da venda do voto a peso de ouro.

Quanto ao poder Executivo, marcado pelo sistema presidencialista bonapartista, é o quartel general do Estado burguês semicolonial, hoje ocupado pelos setores mais reacionários da burguesia aglutinados em torno de Bolsonaro.

E é preciso não esquecer o “quarto” poder, as Forças Armadas e Policiais (e suas tropas associadas de paramilitares milicianos e jagunços), que se manteve nas sombras tutelando o estado desde o fim da ditadura militar, e que sob o governo do capitão e seus generais fascistas encontrou o ambiente propício para irromper novamente na cena política, evidenciando que ainda mantém incólume sua natureza autoritária e antipovo.

É através destas instituições que a burguesia organiza e mantém o massacre cotidiano sobre o povo pobre e trabalhador e contra elas se chocam as lutas de todos os explorados e oprimidos. Para o proletariado, a tarefa que está colocada não é a defesa destas instituições da democracia dos ricos, como querem os signatários da “Carta aos brasileiros”, mas a sua substituição revolucionária por um regime de democracia proletária, em que o povo trabalhador exerça de fato o poder político e possa avançar em direção a uma sociedade socialista. Por isso, os representantes políticos e de sindicatos e movimentos da classe trabalhadora que assinam a carta e bradam com ela “Estado de direito para sempre” não passam de traidores a serviço da salvação do Estado burguês opressor.   

Mas, podem nos questionar: então vocês estão contra defender a democracia contra o fascismo? Respondemos: se amanhã, Bolsonaro colocar os tanques para detonar o STF ou o Congresso, chamaremos a classe trabalhadora a defender o STF aristocrático e o Congresso Nacional de bandidos e corruptos. Neste caso, e só neste caso, estaríamos a favor de defender as instituições da democracia burguesa contra o golpe fascista, e fazer a “unidade de ação” com os setores da burguesia dispostos a defendê-las. Sabemos que é mais vantajoso para nossa classe enfrentar a democracia burguesa em crise do que uma ditadura bonapartista ou fascista. Ao rechaçar os golpistas, os trabalhadores deveriam dizer: esta tarefa é nossa! A tarefa de colocar abaixo os podres poderes “democráticos” do atual regime deve ser realizada pelo proletariado e pela revolução socialista. 

Quanto à carta bolsonarista, o “Manifesto à nação brasileira – Defesa das liberdades”, a escória fascista, militarista e miliciana que a impulsiona nada mais faz do que repetir a tática de Mussolini e de Hitler, que subiram ao poder sobre as escadas da democracia burguesa em crise. Defendem as suas “liberdades e garantias individuais” para que possam seguir impunemente em sua escalada golpista rumo a uma ditadura bolsonarista no país. Querem repetir a tragédia fascista e nazista como tragédia bolsonarista. 

As duas cartas em “defesa da democracia” expressam a profunda divisão da classe dominante em relação ao futuro de sua dominação política e econômica: a salvação do atual regime “democrático” em crise ou sua substituição por um regime bonapartista ou fascista. A pequena burguesia e as “classes médias” se dividem entre a saída democrática e a saída autoritária.

Para tentar salvar sua democracia dos ricos em crise, os setores “democráticos” da burguesia dependem totalmente da ajuda dos dirigentes e partidos que falam em nome da classe trabalhadora. Este é o significado imediato da frente popular, a frente ampla que se forma em torno de Lula e Alckmin, que utiliza as organizações de luta da classe trabalhadora e do povo pobre e oprimido para servir de tábua de salvação ao regime burguês em crise. Esta política de aliança e colaboração de classes, que paralisa e divide a luta da classe trabalhadora, atrelando o proletariado ao navio em naufrágio da democracia burguesa, é o principal fator que abre caminho para o avanço do bolsonarismo e coloca em risco as liberdades democráticas no país.

A tarefa decisiva da classe trabalhadora é romper este atrelamento e imobilismo imposto por suas direções, é conquistar sua independência política da burguesia, para que possa, sob os escombros da atual democracia dos ricos, enfrentar e derrotar o bolsonarismo e avançar para um regime verdadeiramente democrático, uma democracia socialista baseada no poder da classe trabalhadora.

É na direção estratégica da conquista de sua independência de classe, que as trabalhadoras e trabalhadores que vão votar em Lula devem exigir dele a ruptura com Alckmin e os partidos da burguesia. Que Lula governe sem patrões! Junto com os sindicatos e movimentos de luta da classe trabalhadora. Só a mobilização permanente da classe trabalhadora será capaz de defender as liberdades democráticas e derrotar o bolsonarismo e o fascismo.

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