Wiliam Felippe
A Resistência é hoje uma das mais importantes correntes políticas do PSOL. Tem origem na corrente trotsquista fundada por Nahuel Moreno, à qual esteve filiada até sua ruptura com a LIT – Liga Internacional dos Trabalhadores, e sua seção no Brasil, o PSTU, em 2016.
No dia 14/7, publicaram em seu site Esquerda Online uma nota [1], na qual se posicionam sobre os recentes protestos em Cuba. Destacamos os pontos, a nosso ver, mais relevantes: “o justo protesto espontâneo foi sendo apropriado pelas forças contrarrevolucionárias organizadas pela burguesia cubano-americana” (…) O que se pretende, na verdade, é liquidar a soberania de Cuba e as conquistas revolucionárias que sobrevivem, retomando o controle colonial sobre a ilha. (…) a esquerda socialista não pode vacilar em escolher de qual lado da trincheira deve se encontrar: o da defesa de Cuba contra as agressões imperialistas.” E concluem: “Não apoiamos politicamente nenhum protesto que tenha ligação com os EUA e a contrarrevolução”. Ao que acrescentam alertas ao governo cubano sobre a “desigualdade social” causada pelas medidas pró-capitalistas que vem sendo adotadas e reivindicam que “o governo cubano garanta as liberdades democráticas”. Esta nota, portanto, se posiciona nitidamente contra os protestos, caracterizando-os como contrarrevolucionários e dirigidos pela burguesia cubano-americana, e se perfila ao lado do governo e do regime cubano, que estariam defendendo Cuba de um ataque imperialista. Em suma, trata-se da mesma posição expressa pelo bloco estalinista-castrista-chavista (que analisamos na primeira parte deste artigo [2]) – adornada com “críticas” e “conselhos” ao governo de Díaz-Canel.
A Resistência busca justificar esta política com base em dois artigos publicados por Gabriel Casoni e Valério Arcary.
O caráter social da economia de Cuba
No artigo O impasse da restauração capitalista em Cuba [3], o camarada Casoni se vale de sua dissertação de mestradoem História Econômica na USP, Transformações econômico-sociais em Cuba em perspectiva histórica (1990-2014), para exporos principais argumentos que embasam a posição política da Resistência. Reconhece que há uma “etapa de transição ao capitalismo” em Cuba, mas que ainda é uma “transição inconclusa”; apesar de afirmar que a economia tem um “duplo caráter: não-capitalista e capitalista”, conclui que “não houve em Cuba, ainda, uma transformação qualitativa, ou seja, a sua formação econômico-social segue sendo predominantemente não-capitalista”.
De nossa parte, entendemos que é preciso definir o caráter da economia cubana como capitalista a partir da caracterização de sua dinâmica: o “polo capitalista”, quer dizer, a inserção subordinada e dependente no mercado mundial capitalista e o desenvolvimento de relações sociais capitalistas no interior da ilha, já são os fatores dinâmicos da economia e se impõem sobre os setores estatais da economia. É este avanço destruidor do capitalismo sobre as conquistas da Revolução de 1959 que obriga as massas trabalhadoras a sair à luta em defesa de suas condições de vida e de trabalho e de seus direitos sociais.
O principal argumento de Casoni em defesa de sua tese de que “o sistema capitalista ainda não prevalece em Cuba”, é de que “os principais meios de produção do país seguem sendo estatais”, identificando o setor “não-capitalista” com as empresas estatais, que constituem ainda hoje o setor de mais peso na economia de Cuba. É preciso, portanto, começar por desfazer esta confusão feita por Casoni ao colocar um sinal de igual entre “setor estatal” e “não-capitalista”.
Na sociedade capitalista encontramos várias formas de propriedade estatal, que coexistem com a propriedade privada. No Brasil, por exemplo, há várias empresas estatais, como os Correios, o Banco do Brasil e a Petrobrás. Mas, não definimos estas empresas como parte de um setor “não-capitalista” da economia, basicamente por dois fatores: apesar de controladas pelo Estado, estas empresas se regem pelas regras do mercado capitalista, fundamentalmente, a busca do lucro; além disso, a burguesia utiliza formas de propriedade estatal para potencializar o desenvolvimento da acumulação privada capitalista, ou seja, se vale do seu Estado para fortalecer a “iniciativa privada”.
Durante um certo período, marcadamente até meados do século passado, frações das burguesias da América Latina e de vários países dependentes no mundo, que buscavam alavancar um “desenvolvimento nacional” às custas de impor certos limites ao imperialismo, impulsionaram a criação de empresas estatais para colocar o Estado a serviço de seu projeto. No Brasil, Getúlio Vargas deu início a esta política econômica com a criação de várias empresas estatais, como a CSN – Companhia Siderúrgica Nacional, a Companhia Vale do Rio Doce, a FNM – Fábrica Nacional de Motores e a Petrobrás. Até mesmo a ditadura militar criou empresas estatais, a exemplo da Embraer e da Telebrás. Processo semelhante ocorreu no México, na Argentina, na Venezuela, e inúmeros outros países. As antigas empresas estatais siderúrgicas brasileiras, hoje privatizadas, a exemplo da CSN, vendiam as matérias primas de aço a preço subsidiado pelo Estado, para alavancar os lucros do setor automotivo. O Banco do Brasil é utilizado até hoje para fazer empréstimos bancários aos grandes latifundiários e ao agronegócio, “empréstimos” que nunca são pagos integralmente, gerando periodicamente a “rolagem” e “anistia” destas dívidas, o que, na prática, significa um subsídio do Estado para a acumulação capitalista nestes setores.
Um caso emblemático ocorrido nos Estados Unidos foi a “estatização” da General Motors, através da compra da maioria das ações pelo Estado, para salvá-la da falência, na crise de 2008. O mesmo ocorreu com outras grandes corporações nos Estados Unidos e na Europa. Os pacotes de “salvação” de empresas e bancos implementados pelos estados imperialistas durante a crise de 2008 e na crise atual, consumiram trilhões de dólares de recursos do Estado (quer dizer, recursos advindos dos impostos pagos pela população) que foram distribuídos às grandes corporações capitalistas. Na verdade, o Estado capitalista é cada vez mais o fiador das empresas privadas, quanto mais o sistema capitalista afunda em sua crise estrutural.
Portanto, para nada se pode identificar os “setores estatais” da economia como “não capitalistas” pelo simples fato de que são controlados pelo Estado, como faz Casoni. É preciso definir a serviço de que classes sociais está o Estado, ou seja, qual é o caráter de classe do Estado que maneja as “empresas estatais”.
No caso de Cuba, a expropriação e nacionalização-estatização das empresas capitalistas nacionais e imperialistas e dos grandes latifúndios pela Revolução de 1959 foi um passo decisivo para a transformação do estado cubano em um Estado Operário, quer dizer, um estado não-capitalista, apesar de controlado desde o início por uma burocracia, daí seu caráter de estado operário burocrático. Contudo, a estatização das empresas privadas se combinou com outras duas medidas essenciais: a planificação centralizada da economia, que possibilitou ao estado cubano organizar a produção e a distribuição dos produtos para atender as necessidades da população e não de acordo com a anarquia do mercado capitalista, que visa à acumulação e ao lucro privado; e o monopólio estatal do comércio exterior, que impôs o controle centralizado do Estado às trocas comerciais e às relações financeiras com outros estados, principalmente com os estados imperialistas, ou seja, uma medida decisiva para avançar na independência diante do imperialismo. Foi a combinação destas três medidas transitórias socialistas que permitiu que as forças produtivas do país fossem direcionadas para o desenvolvimento coletivo, para a eliminação da fome e da falta de moradia, para a minimização do desemprego, para os investimentos qualitativos na Saúde, Educação, Esporte, Ciência, que elevaram a pequena ilha revolucionária a exemplo para os povos da América Latina e do mundo. Ou seja, por estarem subordinadas a uma planificação econômica pelo Estado Operário cubano, as empresas estatizadas pela Revolução foram colocadas a serviço das necessidades da classe trabalhadora e do povo pobre, diferentemente das empresas estatais criadas por Getúlio Vargas, Perón e outros “nacionalistas” burgueses, que eram utilizadas para dar suporte à acumulação dos capitalistas nacionais em seus países.
No entanto, estes avanços na direção do socialismo ficaram estagnados no terreno nacional, na medida em que Fidel Castro e demais líderes da Revolução Cubana e dirigentes do Partido Comunista Cubano aderiram à doutrina estalinista do “socialismo em um só país” e da coexistência pacífica com o imperialismo, o que levou a uma relação de quase completa dependência econômica de Cuba em relação à União Soviética. Indicamos a nossas/os leitoras/es o artigo Cuba e a dependência externa: passado e presente [4], de Joana Salém Vasconcelos, que traz bastantes informações sobre este tema.
O colapso da URSS, no início da década de 1990, levou instantaneamente a uma crise sem precedentes da economia cubana. O fim da relação dependente com a URSS obrigou a burocracia do Partido Comunista Cubano a fazer uma mudança qualitativa em sua política, cujo eixo passou a ser a restauração do capitalismo como saída para a crise estrutural da economia e da sociedade cubanas. Com este objetivo, ainda sob o governo de Fidel Castro, três medidas foram tomadas: o fim do monopólio estatal do comércio exterior, o fim da planificação centralizada da economia e o fim do monopólio estatal sobre as grandes propriedades (através da Lei de Inversões Estrangeiras, que reabriu o país às empresas imperialistas). Com estas medidas, os três pilares do estado operário cubano foram demolidos, o que gerou uma mudança de qualidade no caráter do Estado cubano, que, de instrumento do proletariado (mesmo que controlado por uma burocracia) para o avanço ao socialismo, passou a ser um instrumento da burguesia e do imperialismo para a restauração capitalista. Estas mudanças levaram a uma inversão completa do papel social das empresas estatais, que se transformaram no principal instrumento manejado pela burocracia do estado cubano para impulsionar a abertura da economia aos capitais privados internacionais e para o apoio ao desenvolvimento de empresas capitalistas no país.
Passados mais de 20 anos do início das reformas pró-capitalistas em Cuba, a restauração do capitalismo já produz resultados visíveis. Vamos citar quatro autores de distinta filiação político-ideológica, que convergem em suas análises sobre o avanço da restauração capitalista na ilha.
Martin Hernandez, da Liga Internacional dos Trabalhadores, afirma:
Hoje as empresas mistas (entre o estado e o capital estrangeiro) dominam 100% da exploração de petróleo, de minério de ferro, da produção de lubrificantes, de serviços telefônicos, da produção de sabão, de perfumaria e da exportação de rum; 70% das agroindústrias e de cítricos e 50% da produção de níquel, de cimento e do setor de turismo. [5]
Maurício Santoro, professor de Relações Internacionais da FGV, afirma:
A maior transformação ocorreu no setor de turismo, que se tornou a principal atividade econômica de Cuba, desbancando a produção de açúcar. As grandes cadeias hoteleiras europeias, em particular as espanholas, afluíram para a ilha. (…) As reformas foram bem-sucedidas nos campos do petróleo e da mineração, cuja produção se multiplicou por seis e três vezes, respectivamente. No setor petrolífero, a descoberta de reservas nas águas do Golfo do México, e os investimentos de empresas chinesas foram fundamentais. Na área mineral, destaca-se a extração do níquel, sobretudo por meio de firmas canadenses (…) [6]
A historiadora Joana Salém Vasconcelos, analisa:
A ampliação da iniciativa privada no mercado interno remonta à reforma econômica em curso nos últimos anos. Em abril de 2011, o Congresso do Partido Comunista aprovou os Lineamientos de la Política Económica y Social del Partido y la Revolución, documento que registra a flexibilização do mercado interno, permitindo a venda particular de imóveis e carros, a ampliação do número de trabalhadores que poderiam ser contratados por estabelecimento e um rol de profissões autônomas regulamentadas pelo Estado.
Mas além desta, desde os anos 1990, uma nova fronteira de capitalização foi aberta em Cuba: a atração de investimento privado estrangeiro para grandes empreendimentos, com vistas ao aumento da produtividade e geração de empregos não estatais. Aprovada em 1995, a Lei de Investimento Estrangeiro buscava atrair capital para alavancar setores estratégicos, tais como o hoteleiro, a extração de níquel e os recursos energéticos, regulamentados sob uma forma mista de propriedade, na qual as empresas e o Estado cubano compartilhariam ganhos e responsabilidades. Desde então, a participação do capital externo da ilha cresceu muito: em 1990, as empresas estrangeiras atuantes na ilha somavam 20; em 1994 eram 176; em 2002 2016 alcançaram 403.”
Recentemente, a participação compulsória do Estado cubano nos consórcios foi dispensada. Em 2014, a lei passou a permitir que as empresas criem canais de investimentos exclusivamente privados, sem participação estatal. Assim, em nome da necessidade de financiamento externo, se ampliaram as margens de lucro privado estrangeiro dentro da economia cubana. Como parte importante dessa fronteira de capitalização, foi oficialmente criada em 2013 a Zona Especial de Desenvolvimento Mariel (ZEDM), que permite condições favoráveis e vantajosas aos capitais externos para grandes projetos de infraestrutura e turismo (CUBA, 2013) [7]
Convidamos nossas/os leitoras/es a visitarem o site do governo cubano sobre a Zona Especial de Desenvolvimento Mariel (ZEDM), onde poderão constatar o processo de expansão dos negócios das empresas imperialistas em Cuba [8].
O avanço das grandes corporações capitalistas sobre a economia cubana e das relações dependentes com o imperialismo europeu e canadense e com o capitalismo chinês é o eixo central da política de restauração capitalista do Partido Comunista cubano à frente do Estado e das empresas estatais cubanas. A restauração capitalista se faz apesar do bloqueio econômico mantido pelo imperialismo estadunidense.
O bloqueio econômico e as relações com o imperialismo
O bloqueio econômico, imposto a partir de 1962, foi a resposta dada pelo imperialismo ianque às medidas socialistas adotadas pela direção da Revolução Cubana. A belicosidade contrarrevolucionária dos Estados Unidos foi determinante para que os objetivos meramente nacionalistas burgueses do Movimento 26 de Julho fossem ultrapassados, fazendo a revolução avançar na direção do socialismo. Hoje, o bloqueio segue impondo muitas restrições à importação de mercadorias vitais para a sociedade cubana e também à exportação de produtos da ilha. Por esta razão, a luta pelo fim do bloqueio é levantada por toda a vanguarda da classe trabalhadora em nível mundial. Contudo, é preciso entender o bloqueio no novo contexto criado pela restauração do capitalismo em Cuba.
Para Casoni e a Resistência a manutenção do bloqueio econômico e a falta de um acordo com o imperialismo estadunidense é o principal fator externo que impede a “restauração plena” do capitalismo em Cuba: “os Estados Unidos não chegaram a um acordo com o governo cubano para pôr fim ao bloqueio econômico e iniciar um processo de colaboração econômica. Ocorreu o inverso: nos anos noventa e dois mil, o governo estadunidense aprofundou o embargo”.
Porém, a realidade mostra o contrário, que o bloqueio econômico não impediu a restauração capitalista, que se faz principalmente através das relações com o imperialismo europeu e canadense e com o capitalismo chinês, como já vimos. Além disso, a manutenção do bloqueio após a virada restauracionista do regime cubano vem aprofundando a crise no interior do imperialismo estadunidense sobre a política para melhor aproveitar a expansão dos negócios capitalistas na ilha. Estas contradições levaram ao início de um processo de colaboração econômica entre o governo estadunidense e o governo cubano, como é descrito por Maurício Santoro:
A crise agrícola gerou problemas de segurança alimentar, e o governo cubano tem recorrido constantemente ao mercado internacional para se abastecer de comida. Estima-se que 60% das importações cubanas ao longo da década de 2000 sejam de alimentos. Ironicamente, um dos principais fornecedores de comida para Cuba são os Estados Unidos. Apesar do embargo, em 2000 o governo Clinton promulgou o Trade Sanctions Reform and Export Enhancements Act (TSRA), que permitia a venda de alimentos a Cuba, Irã e Sudão, desde que fossem atendidas certas condições, como situações de emergência humanitária, e o pagamento fosse feito à vista. Os negócios prosseguiram na administração norte-americana posterior.
Patrick Symmes classifica o embargo de “rede cheia de buracos, uma fábula voluntária de exceções”, pois “enquanto atacava Cuba verbalmente, Bush na verdade expandia o comércio, sob pressão dos congressistas dos estados rurais e do agrobusiness”. As exportações de alimentos para o mercado cubano se multiplicaram de US$4 milhões (2001) para US$432 milhões (2007).
Naturalmente, a expansão comercial se deu graças a interpretações bastante generosas do que constituiu uma “emergência humanitária”, conforme prevista na TSRA. Apresar do pragmatismo econômico, os governos de Cuba e dos Estados Unidos evitam destacar a força do intercâmbio entre os dois países. Por razões de política doméstica, interessa a ambos reduzir a visibilidade dessas operações, de modo a não contrariar os grupos intransigentes às aproximações entre as duas nações. [9]
O resultado deste “pragmatismo econômico” é que os Estados Unidos são o 4º maior exportador para Cuba, segundo dados de 2019, da OMC – Organização Mundial do Comércio. Estes fatos demonstram que o bloqueio econômico vem perdendo força, inclusive dentro do próprio estado ianque.
A própria ONU – Organização das Nações Unidas, organismo político do imperialismo, se posiciona há décadas pelo fim do bloqueio. Na mais recente votação, a 29ª desde 1992, 184 países votaram contra o bloqueio, e apenas 2 a favor (Estados Unidos e Israel), e 3 abstenções (Brasil, Colômbia e Ucrânia), evidenciando o isolamento da política do imperialismo estadunidense [10].
O regime de Díaz-Canel e Raul Castro acusa o bloqueio econômico como a causa da crise econômica e sanitária do país e das penúrias crescentes impostas à classe trabalhadora cubana. Mas, apesar de o bloqueio ser um fator importante, o determinante é a restauração do capitalismo, que faz com que o proletariado cubano tenha de enfrentar o aumento desenfreado da exploração capitalista e a destruição de seus direitos sociais e trabalhistas conquistados através das lutas do passado, da mesma forma que seus irmãos de classe da América Latina e de todo o mundo. A burocracia castrista se esconde atrás da denúncia do bloqueio também para seguir se apresentando para a vanguarda latino-americana e mundial como lutadores antimperialistas, quando na verdade a política de coexistência pacífica com o imperialismo, que já era aplicada por Fidel Castro, se transformou hoje numa política de subordinação semicolonial e dependente ao imperialismo europeu, canadense e aos capitalistas chineses.
Ao ocultarem estes fatos, as análises de Casoni e da Resistência contribuem com a propaganda do regime castrista decadente. No artigo Em defesa de Cuba [11], o camarada Valério Arcary faz uma longa digressão teórica para explicar que “O capitalismo não conseguiu superar as fronteiras nacionais dos seus Estados imperialistas e permanecem, portanto, rivalidades entre as burguesias dos países centrais nas disputas de espaços econômicos e arbitragem de conflitos políticos”. Esta caracterização do imperialismo, formalmente correta, serve para Arcary justificar que Cuba seria um país “independente do imperialismo”, argumento com o qual pretende inflamar a vanguarda para que saia “em defesa de Cuba”, ou seja, em defesa do governo cubano. Arcary deveria utilizar sua preleção de que “Europa e Japão já não acompanham, incondicionalmente, Washington” para demonstrar que os Estados Unidos não conseguem mais impor o bloqueio econômico aos seus parceiros imperialistas da União Europeia e do Canadá, nem à China, que são hoje a linha de frente da restauração capitalista em Cuba. Ao contrário do que afirma Arcary, a primeira vítima da restauração do capitalismo foi justamente o caráter de país independente do imperialismo alcançado por Cuba através da gloriosa Revolução de 1959!
As classes sociais que se beneficiam e as que são prejudicadas com a restauração capitalista
O camarada Casoni aponta que há uma luta em curso em torno à restauração capitalista: “o vínculo entre o setor não-capitalista e o capitalista se define centralmente pela contradição, pelo conflito, pela luta.” Ora, do ponto de vista da análise marxista, este “conflito”, esta “luta” só pode ser entre classes e frações de classe. Portanto, é necessário analisar quais classes e frações de classes estão se beneficiando com o avanço do “setor capitalista” e quais são prejudicadas pelo retrocesso do “setor não-capitalista”. E como o conflito entre estes interesses materiais opostos se manifesta na consciência e na luta entre estas classes e frações de classes.
Casoni se dedica pouco a esta análise, todavia, identifica duas classes sociais que se beneficiariam com o avanço do “setor capitalista”: os pequenos proprietários e trabalhadores por conta própria que vivem em Cuba; e a burguesia cubano-americana. Veremos, mais adiante, que se esquece da classe ou fração de classe mais importante. Mas, comecemos pela análise dos setores que ele identifica.
Casoni afirma que a burguesia cubano-americana tem como projeto “derrubar o regime controlado pelo Partido Comunista Cubano e retomar as propriedades que foram nacionalizadas após 1959” para “ser sócia-minoritária da dominação política e econômica da metrópole (no caso, o imperialismo estadunidense)”. Não temos dúvida de que esta é a política que anima os setores mais reacionários da burguesia cubana que emigrou para a Flórida após ser expropriada pela Revolução de 1959. Todavia, é preciso analisar as contradições que vêm se desenvolvendo neste setor após as reformas pró-capitalistas impulsionadas pelos dirigentes do estado cubano. Neste sentido, nos parecem pertinentes as observações feitas por Maurício Santoro [12]:
Contudo, é errôneo considerar a comunidade cubano-americana como monolítica, sempre em oposição a entendimentos com Cuba. São cerca de um milhão de pessoas, quase 90% do total de emigrados cubanos. Ao longo das décadas de 1990 e 2000 houve uma mudança geracional, com a morte ou saída da cena pública dos ativistas veteranos, que haviam vivido o período anterior à Revolução e passado pelos traumas da prisão, confisco da propriedade ou exílio (cerca de 25% do total de cubano-americanos), como o célebre Jorge Mas Canosa, da Fundação Nacional Cubano-Americana. Seus filhos e netos (outros 25%) começaram a despontar como líderes políticos e apresentaram posições mais moderadas, fruto de sua experiência pessoal bastante diversa.
Há também ampla parcela da comunidade emigrada para os Estados Unidos a partir do chamado “êxodo de Mariel”, na década de 1980 (aproximadamente 50%), motivada por razões econômicas, e não ideológicas, e que havia passado infância e adolescência sob a Revolução, com memórias mais ambivalentes com relação ao regime socialista.
As novas gerações da comunidade cubano-americana divergem dos mais velhos em pontos cruciais da agenda política. Por exemplo, entre os jovens, 53% são favoráveis a terminar com o embargo econômico, contra apenas 30% entre a faixa idosa. Os mais novos também são bem mais simpáticos a facilitar as viagens para Cuba, e mais de 30% deles já estiveram na ilha, contra 18% dos velhos. As atitudes privadas em mudança às vezes conflitam com os valores estabelecidos: “Mais de cem mil cubano-americanos regressavam à ilha todo ano, e não eram bobos de abrir o bico de um lado ou outro do estreito. Em Cuba, ficavam calados sobre política. E quando voltavam a Miami, ficavam calados sobre terem estado na ilha. Com o passar dos anos, alguns dos mais eloquentes defensores da proibição de viagens a Cuba foram pegos no Miami International [Airport] voltando de uma visita à família”.
A associação mais prestigiosa da geração em ascensão é o Conselho da Liberdade Cubana, cujos dirigentes foram recebidos inclusive pelo presidente George W. Bush. Eles declararam disposição para negociar com altos funcionários cubanos, contanto que não sejam os irmãos Castro.
Cumpre observar ainda o grande peso das remessas de dólares que os cubano americanos enviam para a ilha – cerca de US$1 bilhão por ano, fundamentais para a problemática balança de pagamentos do país e para a manutenção de patamar mínimo de conforto para muitas pessoas. Como os cubanos observam de maneira bem-humorada, para lidar com as condições de vida na ilha, é importante ter FE – Família no Exterior.
Em síntese, o pragmatismo comercial do agronegócio e as mudanças na opinião política da nova geração de cubano-americanos constituem as bases para a proposta de um novo diálogo com Cuba lançada pelo presidente Barack Obama.
Já havíamos recorrido aos estudos de Santoro que demonstram a flexibilização do bloqueio econômico a Cuba para atender aos interesses de setores do agronegócio estadunidense. Sua análise sobre as contradições no interior da burguesia cubano-americana vem completar um quadro que demonstra as fortes contradições no interior do imperialismo estadunidense sobre qual política adotar para melhor se posicionar diante da restauração capitalista em Cuba. E questionam o quadro monolítico pintado por Casoni de que “a política norte-americana em relação a Cuba, da década de noventa até a atualidade, manteve-se, no essencial, a mesma do período em que vigorava a Guerra Fria.” Com a ascensão de Biden ao poder vão se intensificar as pressões no sentido de retomar a política de Obama de avançar na colaboração entre Washington e Havana, interrompida durante o breve interregno trumpista.
Em relação aos setores sociais pró-capitalistas no interior de Cuba, Casoni destaca os “pequenos proprietários e também os trabalhadores por conta própria destituídos de propriedade, ainda que relativamente pobres, aspiram desenvolver seus negócios e ganhar mais dinheiro, isto é, melhorar de vida por meio do mercado, da obtenção de maiores lucros”.
De fato, as estatísticas oficiais do governo cubano indicam que a composição da força de trabalho já conta com cerca de 1,5 milhão de pessoas no setor privado, e cerca de 3 milhões no setor estatal (dados de 2019 [13]). Um estudo interessante feito por Richard E. Feinberg, para a revista conservadora estadunidense Foreign Policy [14], aponta que os dados oficiais subestimam o número de trabalhadores do setor privado “informal”:
Pode-se afirmar razoavelmente que existem outros 600.000 a 1.000.000 trabalhadores (ou mais) que pertencem ao setor privado. Entre eles estão trabalhadores em tempo integral em empresas da economia informal, paralela ou ilegal, além de outro segmento da população, provavelmente maior, que vamos chamar GESPI (funcionários públicos que ganham renda privada substancial pelo menos igual aos seus baixos salários públicos) que participam de diversas atividades criativas. No total, há pelo menos dois milhões (quarenta por cento do total de empregos) de empreendedores cubanos (inclusive este número poderia ser maior) que podem ser incluídos no setor privado.
Além destes dados, Feinberg aponta também o papel ativo dos novos empresários cubanos em alavancar seus negócios se aproveitando das propriedades estatais, seja através de aluguéis de imóveis do Estado para estabelecer seus negócios, seja através de intercâmbios com empresas estatais para o fornecimento de insumos ou para a venda de seus produtos e serviços.
Em fevereiro deste ano, o governo de Díaz-Canel ampliou de 127 para mais de 2000 atividades profissionais que podem ser oferecidas através de pequenos negócios e trabalhadores autônomos [15]. E, logo após os protestos de 11 de julho, foi aprovada a permissão para a formação de pequena e médias empresas e para o desenvolvimento de cooperativas não agropecuárias e dos trabalhadores autônomos ou por conta própria [16].
Estes fatos e números dão conta da expansão acelerada das relações sociais e econômicas capitalistas na ilha. E quando falamos em relações sociais capitalistas, é preciso não esquecer de que falamos de relações de exploração de uma classe sobre a outra. Estas relações de exploração se intensificam em Cuba a partir da flexibilização da legislação trabalhista para a contratação de trabalhadores pelas grandes empresas imperialistas ou de capital misto (estatal + imperialista) instaladas no país, assim como pelas pequenas e médias empresas e cooperativas. Sob a rubrica de trabalhadores autônomos, esconde-se que uma parte destes autônomos são patrões, e outra parte é composta de assalariados que trabalham para estes patrões.
É preciso também explicar por que um número crescente de pessoas se vincula à iniciativa privada, sob as mais variadas formas, e quais processos econômicos e sociais dão base ao desenvolvimento destas relações e qual é o papel político do Estado como incentivador delas.
Um elemento central para entender isso é a política monetária implantada com as reformas pró capitalistas, em 1994, que estabeleceu dois tipos de moeda em Cuba: a CUC, que é convertida na proporção 1 CUC = 1 dólar, e a CUP, ou moneda nacional, que equivale a 1 CUP = 20 a 25 dólares. A desigualdade social é crescente entre os setores da população que têm acesso à moeda forte (CUC) e a grande maioria que recebe seus salários em “moeda fraca” (CUP), como os empregados do estado. A escassez provocada pela crise, a política de “austeridade fiscal” do regime e a mercantilização crescente das mercadorias e serviços por comerciantes e empreendedores privados (legais ou do mercado paralelo) tem levado ao encarecimento dos produtos e serviços para a população pobre e trabalhadora. A possibilidade de se estabelecer como profissional autônomo ou patrão de pequenos e médios negócios é o caminho buscado por um número crescente de trabalhadores como forma de tentar escapar desta situação. Maurício Santoro e Joana Salém descrevem esta realidade:
A expansão do turismo gerou igualmente um amplo mercado de trabalho em tempo integral ou parcial para muitos cubanos, em atividades informais como guias, motoristas e garçons. Do ponto de vista social, o acesso a moedas fortes – dólares ou euros – tornou os prestadores de serviços aos estrangeiros um grupo privilegiado na sociedade cubana, minando alguns dos valores de igualitarismo e austeridade da Revolução. O aspecto mais problemático é o retorno da prostituição e do turismo sexual em larga escala, cuja erradicação havia sido um dos orgulhos do regime estabelecido em 1959 .[17]
Cuba atravessou uma austeridade fiscal que impactou diretamente seus indicadores sociais. Segundo José Luiz Rodríguez García, economista e parlamentar cubano: “embora não exista uma medição precisa do coeficiente de Gini desses anos, tudo indica que esse passou de 0,22, antes de 1990, em torno de 0,40, ao longo da década de 1990”, refletindo um duro ajuste das políticas sociais. A libreta criada nos anos 1960, uma cesta básica mensal que a população recebia do Estado, foi reduzida de aproximadamente 50 produtos para menos de 10. Conforme o tempo passava, cada vez mais produtos de necessidade básica apareciam vendidos em divisas no mercado interno, dificultando sua aquisição pela maioria da população, constituída por assalariados estatais. Com isso, dois fenômenos simultâneos se fortaleceram: por um lado, a ampliação dos contrabandos de bens de consumo cotidianos (sabonetes, canetas, calça jeans, eletrônicos em geral) e, por outro, a busca crescente por novas atividades profissionais que permitissem o aproveitamento privado do diferencial CUC-CUP.[18]
A burocracia castrista se transforma em uma nova burguesia
Através deste mecanismo social está se formando e desenvolvendo uma nova classe média, uma nova pequena burguesia e uma nova burguesia em Cuba. A burguesia cubano-americana se encontra marginalizada deste processo, devido à política dos seus setores mais reacionários que ainda prevalece. A restauração capitalista se deu não pelas mãos da antiga classe dominante, mas pela ação de setores sociais no interior de Cuba, como vimos. E há um setor social que ocupa um lugar privilegiado neste processo de estratificação de classes: a burocracia estatal e a alta cúpula do Estado cubano, que detém o monopólio do poder político, formula a política econômica do regime e que, pelo controle que exerce sobre as empresas estatais, se beneficia da associação com as empresas imperialistas, fator chave da restauração capitalista em curso.
Porém, por incrível que pareça, nas análises de Casoni, a burocracia castrista não aparece como beneficiária da expansão do “polo capitalista” na ilha. No seu esquema teórico a burocracia estatal sequer existe como setor social, está oculta atrás das categorias abstratas de “regime” e “estado”. Segundo ele “a liderança do Partido Comunista Cubano (PCC), que detém o monopólio do poder político na ilha, defende e patrocina as reformas pró-capitalistas até certos limites cruciais, como a preservação da propriedade estatal sobre a maioria dos principais meios de produção e distribuição”. (…) Ante a estratégia comum do imperialismo estadunidense e da burguesia cubana emigrada, a governo cubano é impelido a travar o processo de transição ao capitalismo em seus limites críticos.” E conclui que “o Estado cubano é indutor da transição capitalista deflagrada e, ao mesmo tempo, obstaculizador do avanço dela”.
Ora, já buscamos demonstrar que a “preservação da propriedade estatal sobre a maioria dos principais meios de produção e distribuição” é utilizada pela burocracia castrista não para melhorar as condições de vida do povo pobre e trabalhador, mas como um instrumento para o desenvolvimento das relações sociais capitalistas, a começar pela associação com as grandes corporações europeias, canadenses e chinesas. Mostramos também como a restauração capitalista está sendo feita sem que a burguesia cubano-americana esteja à frente do processo, e apesar do bloqueio econômico estadunidense. Portanto, a caracterização de Casoni de que o “estado” cubano, ou seja, a burocracia castrista que o controla, cumpre o duplo papel de “indutor” e de “obstaculizador” da restauração não tem base na realidade, refletindo apenas o eco da propaganda castrista.
Esta caracterização de Casoni de que a burocracia castrista tem uma dupla natureza, pró-capitalista, por um lado, e pró-socialista, por outro, não é nada nova, é tomada de empréstimo das elaborações de Ernest Mandel e de outras direções trotsquistas que capitularam ao castrismo e ao estalinismo no passado. Nahuel Moreno, em sua obra Teses para a atualização do Programa de Transição, tese XIII [19], faz uma análise sociológica brilhante sobre o caráter de classe da burocracia dos antigos estados operários, incluída a burocracia castrista, desmontando a tese da “dupla natureza”.
Para justificar seu apoio às direções burocráticas e pequeno burguesas do movimento de massas, o revisionismo desenvolveu a teoria da dupla natureza: tais direções seriam burguesas em um sentido, proletárias em outro. No que diz respeito ao castrismo, esse raciocínio é ampliado com uma consideração política: por não ser stalinismo, tem garantido um curso revolucionário, ou chega a sê-lo diretamente. (…)
Essa teoria, além de revisionista, nega a análise marxista, de classe, dos fenômenos políticos. As correntes pequeno-burguesas e burocráticas do movimento operário refletem um setor privilegiado do movimento de massas, que se constituiu na época imperialista, que é antagônico à base operária e popular. (…)
Não devemos confundir a natureza e a função da burocracia com sua localização social. Nem acreditar que as contradições provocadas por sua origem e localização façam com que mude sua verdadeira natureza. A burocracia é o agente da contrarrevolução dentro de uma instituição operária, da qual se apodera para ter uma vida privilegiada, separada da base operária. (…)
A burocracia operária é agente do imperialismo dentro do movimento operário, razão pela qual tem atritos com outros agentes do imperialismo e até com o próprio imperialismo, quando este tenta destruir as instituições operárias, cujo controle e monopólio permitem aos burocratas ter uma vida privilegiada. Mas, isso não significa que a burocracia tenha uma dupla natureza, e sim, justamente, que responde à sua natureza como agente do imperialismo dentro do movimento operário e de suas organizações. (…)
Algo semelhante acontece com correntes pequeno burguesas como o castrismo, que chegam a dirigir um movimento revolucionário de massas e até a expropriar a burguesia nacional e o imperialismo. São um setor social distinto da classe operária que, assim como a burocracia, faz parte da moderna classe média. Nada o demonstra melhor do que o fato de que, assim que tomam o poder, tornam-se tecnocratas ou burocratas — estatais ou políticos — sem grandes sobressaltos. Se antes da tomada de poder eram uma corrente da classe média moderna que dirigia o movimento de massa, após a tomada do poder eles se transformam automaticamente, por sua diferenciação específica com a classe operária, em burocracia.
O revisionismo assegura que essas correntes pequeno burguesas, principalmente a castrista, podem transformar-se em operárias-revolucionárias, por terem expropriado a burguesia nacional e o imperialismo. Nós pensamos exatamente o contrário. Por razões sociais, não podem jamais se transformar em uma corrente revolucionária que reflita os interesses das bases operárias, dos seus setores mais pobres e explorados. Essa impossibilidade obedece à mais elementar das leis marxistas. Nenhum setor socialmente privilegiado aceita perder seus privilégios ou se transformar, no seu conjunto, como setor social, em outro setor social inferior, diferente. Pelo contrário, todo setor social com privilégios tende a aumentá-los. Todo setor privilegiado pode, obrigado por circunstâncias objetivas, ir mais além do que pretendia no campo político, para defender seus privilégios e para aumentá-los, quando se vê ameaçado de perdê-los. Mas nunca combaterá seus próprios privilégios unindo-se aos setores mais explorados que lutam contra eles. Nunca no processo histórico – que é impulsionado precisamente por essa luta de interesses – vimos um setor privilegiado abandonar voluntariamente seus próprios privilégios, o que seria suicidar-se como setor de classe. Se assim fosse, o reformismo teria razão. (…)
Esse caráter da burocracia mostra sua verdadeira natureza quando há uma situação crítica, pois, quando há um boom, pode se disfarçar negociando migalhas. É nesses momentos críticos que a burocracia, inclusive, e muitas vezes, preferencialmente, a stalinista, apoia ou faz o jogo dos planos de superexploração dos capitalistas “amigos”, com quem chega até mesmo a elaborar planos conjuntos para superar a crise.
Entendemos que esta análise sociológica e política de Moreno nos fornece os elementos teóricos necessários para compreender o processo de transformação da burocracia castrista em uma nova classe burguesa em Cuba, utilizando para isso sua situação privilegiada à frente da ditadura cubana.
A capitulação política ao castrismo decadente
O revisionismo teórico sempre vai de mãos dadas com a capitulação política. Da análise sobre o “duplo caráter” do “regime” cubano, e de sua função de “defensor das conquistas sociais e democráticas da Revolução”, Casoni conclui que o regime cubano mantém sua “legitimidade política” diante da população trabalhadora, “malgrado seu caráter burocrático e repressivo”. Em outras palavras, o proletariado de Cuba apoia a ditadura castrista como garantidora das conquistas da Revolução. Ora, armado com este tipo de caracterizações, não é difícil entender por que a Resistência, desde o primeiro instante, se alinhou ao regime castrista contra os protestos de 11 de julho!
O camarada Valério Arcary é mais enfático na defesa da ditadura de Canel-Castro: “As manifestações em Cuba não podem ser compreendidas sem a ação pelas redes sociais de núcleos articulados com as organizações da diáspora burguesa e seus satélites na Florida. Ainda que pareçam, superficialmente, acéfalas, elas obedecem a um plano de incendiar uma explosão popular e derrubar o governo.” Estas palavras repetem o mesmo argumento do presidente cubano, Díaz-Canel, de que os protestos foram coisa de “oportunistas, contrarrevolucionários e mercenários financiados pelo governo dos Estados Unidos”. Arcary argumenta também que “as razões que levam pessoas às ruas, mesmo quando são legítimas e compreensíveis, não são um fator suficiente para a caracterização dessas mobilizações como progressivas.” Outra forma de dizer o mesmo que Díaz-Canel, que afirmou: “há pessoas com insatisfações legítimas devido à situação em que estão vivendo, e também revolucionários confusos”. As palavras de Canel e Arcary tem ao menos o mérito de nos poupar de ter de provar que os protestos foram realizados pelas massas populares e pelo povo pobre e trabalhador de Cuba, fatos que nos dias e semanas seguintes ao 11 de julho foram evidenciados de forma incontestável.
Contudo, o camarada Valério se propõe a colocar um pouco de juízo na cabeça destes “revolucionários confusos”, que, como nós do GOI, nos posicionamos a favor dos protestos. Segundo ele, “A ideia, muito popularizada de forma unilateral, de que uma mobilização pode ser progressiva, se as reivindicações são justas e o sujeito social é popular, mesmo se a direção é reacionária, tem às vezes uma esmola ou grão de verdade, mas se ignorar os resultados prováveis é errada. Trata-se de objetivismo.” Incrível argumento! Para Arcary, o apoio ou não aos protestos em Cuba deve levar em conta os seus resultados prováveis. Então, vejamos. Como não há neste momento uma direção revolucionária à frente dos protestos, podemos concluir que o resultado imediato mais provável não será uma revolução que expulse a burocracia castrista do poder e instale um verdadeiro governo operário e popular que retome a senda do socialismo. Apesar disso, a “explosão popular” das massas “confusas”, “articuladas” pelas redes sociais da burguesia cubano-americana pode“derrubar o governo”. Como o governo Canel-Castro, “malgrado seu caráter burocrático e repressivo”, ainda mantém sua “legitimidade política” diante do povo cubano, nada mais nos resta do que nos agarrar aos “obstaculizadores” castristas, obviamente de forma “crítica”.
Ora, a história é farta em demonstrar que as rebeliões populares se iniciam com as massas lutando por suas reivindicações mais imediatas, apesar dos limites de sua consciência política. As massas entram em luta com a consciência de que dispõem no momento. Poderíamos identificar uma regra: as massas exploradas e oprimidas sempre têm bastante consciência de quais são suas reivindicações imediatas (por exemplo, em Cuba: comida, vacina, medicamentos, eletricidade, liberdade), e quem é o seu inimigo imediato, ou seja, aquele que maneja o chicote! (por exemplo: a ditadura de Canel-Castro), mas têm uma consciência muito limitada (podemos dizer, “confusa”) quanto aos objetivos finais que devem nortear a sua luta para que seja vitoriosa. Daí a necessidade imprescindível do partido revolucionário. O partido revolucionário só pode almejar disputar a direção das lutas populares se, antes de mais nada, for parte delas, se juntar a elas, e, inserido neste processo vivo, através de sua propaganda e agitação política, estabelecer uma ponte para elevar a consciência atrasada (confusa) das massas em luta. Este é o ABC da política de Lenin e Trotsky, também reivindicada pelos camaradas da Resistência. Porém, para resgatá-la, é necessário que os quadros desta organização coloquem um pouco de juízo nas cabeças confusas de seus dirigentes.
Protestos contra um estado burguês ou contra um estado operário burocratizado?
Resta-nos um último argumento para dialogar com os camaradas da Resistência. Poderíamos estender por um longo tempo o debate teórico sobre a restauração capitalista em Cuba. Porém, a definição precisa do momento em que se encontra o processo de restauração capitalista não é determinante para definir a política revolucionária diante dos protestos populares contra o governo e o regime cubano. Em outras palavras, a questão de saber se os protestos populares se dão contra um estado burguês já restaurado, como nós afirmamos, ou se dão contra um estado operário burocrático, não é decisiva. Tanto em um como em outro caso, a política revolucionária só pode ser uma: do lado do povo rebelado e contra o governo e o regime ditatorial do Partido Comunista cubano.
Consideremos por um momento que Casoni e a Resistência estejam corretos em suas análises de que se trata não de um estado burguês, mas sim de um estado operário burocrático. Qual deveria ser a política trotsquista?
Trotsky, no Programa de Transição, no capítulo “A União Soviética e as tarefas da época de transição” [20], define o conteúdo da política revolucionária para a URSS:
o regime da URSS traz em si contradições ameaçadoras. Mas, permanece um regime de estado operário degenerado. Tal é o diagnóstico social. O prognóstico político tem um caráter alternativo: ou a burocracia, tornando-se cada vez mais o órgão da burguesia mundial no Estado operário, derrubará as novas formas de propriedade e lançará o país de volta ao capitalismo ou a classe operária destruirá a burocracia e abrirá uma saída em direção ao socialismo.
Acreditamos que os camaradas da Resistência devem concordar que a política de Trotsky, válida para a URSS, em 1938, também seria válida hoje para Cuba, na hipótese de que segue sendo um estado operário burocrático. Observem, camaradas, que Trotsky não outorga à burocracia soviética nenhum papel revolucionário na defesa da URSS: ou ela será o “órgão da burguesia mundial” para restaurar o capitalismo ou será destruída por uma nova revolução operária que abrirá caminho ao socialismo. Em qualquer das duas hipóteses, a classe trabalhadora necessita fazer uma revolução contra a burocracia para defender as conquistas da revolução e seguir avançando em direção ao socialismo.
Trotsky considera a hipótese da tática de frente única diante de enfrentamentos entre alas da burocracia com políticas divergentes frente ao imperialismo:
Assim, se não é possível negar, antecipadamente, a possibilidade, em casos estritamente determinados, de uma frente única com a parte termidoriana da burocracia contra a ofensiva aberta da contrarrevolução capitalista, a principal tarefa política na URSS continua sendo, apesar de tudo, a derrubada da própria burocracia termidoriana. O prolongamento de seu domínio abala, cada dia mais, os elementos socialistas da economia e aumenta as chances de restauração capitalista.
Não resta dúvida de que o eixo da política trotsquista é a revolução política do proletariado contra a burocracia. Perguntamos, então, aos camaradas da Resistência: na medida em que consideram ainda Cuba como um estado operário burocrático, como se aplica esta política diante da burocracia do Partido Comunista Cubano? Entendemos que já temos a resposta a esta pergunta, simplesmente porque não existe a palavra burocracia na nota e nos artigos da Resistência que estamos analisando. Podemos deduzir, portanto, que para a Resistência, os dirigentes do PC Cubano e do Estado cubano não são uma burocracia, menos ainda uma nova classe burguesa, como afirmamos. Por esta razão abandonam o método e a política de Trotsky e de Moreno.
23/8/2021
[1] https://esquerdaonline.com.br/2021/07/14/solidariedade-ao-povo-cubano-fim-imediato-do-bloqueio-criminoso-dos-eua-1/
[2] A questão cubana (parte 1) – Estalinismo e trotsquismo – GOI – Palavra Operária (goipalavraoperaria.blog)
[3] https://esquerdaonline.com.br/2021/07/14/o-impasse-da-restauracao-capitalista-em-cuba/
[4] Cuba e a dependência externa: passado e presente | IELA – Instituto de Estudos Latino-Americanos (ufsc.br)
[5] https://www.pstu.org.br/cuba-da-revolucao-a-restauracao-2/
[6] https://www.scielo.br/j/rbpi/a/9cT5KfjBBqxP4tMtNpJXFwn/?lang=pt
[7] Obra citada na nota 4.
[8] https://www.zedmariel.com/es
[9] Obra citada na nota 6.
[10] https://g1.globo.com/mundo/noticia/2021/06/23/onu-condena-embargo-dos-eua-a-cuba-pela-29a-vez-brasil-muda-de-posicao-e-nao-vota.ghtml
[11] https://esquerdaonline.com.br/2021/07/15/em-defesa-de-cuba/
[12] Obra citada na nota 6.
[13] http://www.onei.gob.cu/sites/default/files/07_empleo_y_salario_2019_sitio_0.pdf
[14] https://www.brookings.edu/wp-content/uploads/2016/07/aterrizaje-cuba-surgimiento-empresarios-clases-medias-feinberg.pdf
[15] https://www.moneytimes.com.br/cuba-abre-espaco-para-pequenas-empresas-privadas-na-maior-parte-dos-setores/
[16] https://www.em.com.br/app/noticia/internacional/2021/08/07/interna_internacional,1293699/cuba-legaliza-pequenas-e-medias-empresas.shtml
[17] Obra citada na nota 6.
[18] https://diplomatique.org.br/cuba-e-a-propriedade-privada/
[19] https://www.marxists.org/espanol/moreno/actual/apt_3.htm#t23
[20] https://www.marxists.org/portugues/trotsky/1938/programa/cap02.htm#17